A história da cozinha brasileira – elementos indígenas, portugueses, africanos,
o que nos veio da França, a presença do Oriente por intermédio de Portugal e da
Espanha, molhos, condutos, aparelhagem doméstica, superstições relativas à alimentação,
dietas, tabus, condimentos, alguns com intenção mágica, como me informou um
observador excelente, o senhor José Pires de Oliveira, de São Paulo – é assunto
merecedor de inquéritos e sistemáticas para o quadro realístico de nossa
etnografia tradicional. As modificações locais, os cardápios de sobremesa, a
carta dos alimentos servidos nas festas velhas, batizado, aniversário,
casamento, nos vários pontos do Brasil e de acordo com os recursos peculiares
às diversas regiões, enfim a geografia culinária do Brasil está esperando que
alguém cumpra o seu dever.
Mas não houve o aproveitamento de todas as frutas. Algumas continuaram arreadas dos requintes e amaciamentos. Permanecem insubmissas a Pedro Álvares Cabral e seus sucessores. O ingá, o jatobá, o guajiru, ubaia, camboim, maçaranduba, jabuticabas, juá, cajaranas só permitem aproximação respeitando-se-lhes a personalidade do século XVI. Se mereceram exame, foram reprovadas por inadaptação subseqüente.
Os estudos de Manuel
Querino, Sodré Viana, Bernardino José de Souza bem valem reedição. Há um ensaio
de Nina Rodrigues, escrito no Maranhão e publicado em 1888, sobre o Regime
alimentar no Norte do Brasil. Sobre o extremo norte há um outro de Araújo
Sima, que não pude consultar. Gilberto Freyre examinou os doces da casa-grande
(Açúcar. Ed. José Olympio, 1939). O interesse científico pela
alimentação determinou uma série de monografias e livros, fixando espécies e
sugerindo padrões. O senhor A. J. de Sampaio publicou Alimentação sertaneja
e do interior da Amazônia (Brasiliana, 238). Hildegardes Viana, uma
deliciosa Cozinha baiana (Bahia, 1955). Há realmente, uma bibliografia
volumosa, mas essencialmente ligada à nutrologia e à dietologia. Os etnógrafos
ainda não tiveram interesse positivo por esse campo gostoso e
essencial.
Aos etnógrafos não apareceu
sedução maior para uma tentativa de sistematização, pesquisas nas regiões
naturais, riscando as características locais, lindando as fronteiras das contigüidades.
Extremo norte, nordeste, leste, centro, sul, fixando as áreas de certos
alimentos típicos, condutos, temperos, horários de refeições, etc. Há um
material extenso e já divulgado, mas esparso, espalhado, difuso, pedindo
coordenação clara e certa.
Decorrentemente, estudando
os bolos e os doces, os triviais e os festivos, havia ocasião de examinar a
ciência do papel-recortado, segredos de senhoras-amas de filha-família, com
certos tipos conservados como um direito autoral de grupos seletos. Modelos que
são obras de arte, reminiscências puras de exemplos vindos de Portugal.
Verdadeira renda de papel enfeitando bandejas, bolos redondos, caixas
poligonais, cestas, cartuchos com farinha de castanha, farinha de milho,
castanhas cobertas com açúcar. Possuo uma pequena coleção desses papéis
recortados. Algumas peças têm mais de cem anos. São dignos de uma observação
pública, como fizeram os portugueses em 1936, na Exposição de Arte Popular, em
Lisboa.
Em Portugal, esses assuntos
estão apaixonando etnógrafos e artistas. O senhor Emanuel Ribeiro publicou, em
1928, O que é doce nunca amargou e A arte do papel recortado em
Portugal, 1933. Conheço a monografia do senhor Castro e Brito sobre a Doçaria
de Beja na tradição provincial, e a do senhor Guilherme Cardim – Cozinha
portuguesa e pratos regionais – com um plano simples de instalação de
hotéis típicos e estalagens de cunho tradicionalista, excelente ambientação
para turismo e análise etnográfica.
Fomos logo indústria do
açúcar ao amanhecer para o mundo. O carro de boi gemeu pelo Recôncavo Baiano,
trazendo canas para as moendas verticais. Assim, nas várzeas ao redor de
Olinda. Os poetas da Holanda, glorificando a conquista, deram o título
sugestivo de Suikerland, terra do açúcar à região onde a Geoctroyerd
Westindische Companie chantara sua bandeira de posse. Cem
anos depois no outro engraçadíssimo Anatômico Jocoso, a genealogia de
uma sécia
entroncava, simbolicamente, com um fidalgo brasileiro chamado dom Açúcar,
homem de grande engenho, inventor de várias gulodices.
Muito doce não se
popularizou no Brasil pela dificuldade de sua fabricação. Pelo tempo que
tomava. Ficou sendo como vestido novo para dia de festa. Esse doce aparecia nas
bandejas enfeitadas, nas tardes de Natal, para a Ceia, ou para a Semana Santa,
quando, ainda alcancei, havia o hábito de pedir-se o jejum em versos
para a consoada.
As mulheres pobres faziam
doces pobres, bem simples, rápidos, de vendagem quase imediata. Havia uma intuição
psicológica sobre as simpatias do mercado consumidor e uma obediência rigorosa
às praxes. Certos doces só podiam aparecer em certas épocas. Doce seco, pela
Noite de Festa; filhós, pelo Carnaval; canjica, pelo São João. Não digam que a
produção do milho força sua entrada nas mesas. Têm-se milho quase o ano
inteiro. Mas canjica, pamonha, só tem graça, só senta, pelo São João.
Os doces de tabuleiro são
como uma constante etnográfica. Indicam a democratização, o coletivismo
de certas fórmulas antigamente dedicadas às festas aristocráticas ou mundanas, beijos,
raivas, sequilhos, alfenins, suspiros. Outros que
vieram do povo, sem especiaria, como a cocada, cuscuz, farinha de castanha ou
de milho, puxa-puxa feito de mel de engenho. Outros foram experiências, golpes
de gênio que conseguiram vitória para todos os sabores.
Os dois elementos predominantes na doçaria nacional foram estranhos à terra brasileira. O coco, asiático, e o açúcar, vindo das ilhas, sinônimo da Madeira. A mão da mulher branca iniciou a maravilha das combinações, fazendo valer os recursos do Brasil ainda bravio. Adoçou a castanha, descascou o abacaxi, utilizou o milho. A mestiça, a bá, a mucama continuaram o reinado. Tinham sido alunas.
Os dois elementos predominantes na doçaria nacional foram estranhos à terra brasileira. O coco, asiático, e o açúcar, vindo das ilhas, sinônimo da Madeira. A mão da mulher branca iniciou a maravilha das combinações, fazendo valer os recursos do Brasil ainda bravio. Adoçou a castanha, descascou o abacaxi, utilizou o milho. A mestiça, a bá, a mucama continuaram o reinado. Tinham sido alunas.
Mas não houve o aproveitamento de todas as frutas. Algumas continuaram arreadas dos requintes e amaciamentos. Permanecem insubmissas a Pedro Álvares Cabral e seus sucessores. O ingá, o jatobá, o guajiru, ubaia, camboim, maçaranduba, jabuticabas, juá, cajaranas só permitem aproximação respeitando-se-lhes a personalidade do século XVI. Se mereceram exame, foram reprovadas por inadaptação subseqüente.
Os doces de tabuleiro são,
pelo nordeste, denominados engodos, isto é, enganos. Enganavam ou adiavam
a fome.
O tabuleiro tem suas
"constantes" através do tempo. Conserva sua iluminação própria. Uma
lamparina de querosene, gás, como dizem na cidade do Natal. Com toda a
iluminação elétrica, alto-falantes gritando, automóveis, rádios, os tabuleiros
acendem a fita trêmula daquelas luzes vermelhas, enroladas de fumaça. Era assim
durante as Santas Missões de frei Serafim de Catânia, em 1843. Nada mudaram.
A mulher que faz a venda,
sinônimo de tabuleiro de doces, guarda uma lamparina unicamente para sair à noite,
nas festas, com a luz. Não serve para outro mister em casa. É um
pormenor que se tornou maquinal pela antigüidade. Tabuleiro com toalha branca,
os bolos e doces colocados em fileiras, os que melam, longe dos secos.
Num ângulo, a lamparina. Acendem a luz como num cerimonial, iniciando o mercado.
Primeira venda sempre a dinheiro, para não atrasar. Dinheiro chama
dinheiro.
Só
ultimamente encontrei frutas vendidas à noite. Frutas, só durante o dia eram
expostas. No máximo, até a tarde. Mas as frutas compradas de noite são paredes
para beber-se aguardente. Um gole e uma dentada equilibram.
Lembro apenas esses doces
pobres e populares, outrora vendidos a vintém. Ainda estão resistindo nos
tabuleiros, oferecidos nas noites de Novena da Padroeira.
Na cidade do Natal, na festa de Nossa Senhora da Apresentação; em João Pessoa, na festa de Nossa Senhora das Neves; no Recife, na festa do Poço da Panela; na festa de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém do Pará; na novena do Senhor do Bonfim, na Bahia, o campo está virgem, cutucando o apetite alheio. Duram esses doces porque têm o seu humilde mercado consumidor, teimoso na predileção secular. O moleque, já dizendo nô-bom alô mai frende, tira o remastigado chicle da boca e volta aos velhos doces, que seu avô também comeu na mesma época e feição.
Na cidade do Natal, na festa de Nossa Senhora da Apresentação; em João Pessoa, na festa de Nossa Senhora das Neves; no Recife, na festa do Poço da Panela; na festa de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém do Pará; na novena do Senhor do Bonfim, na Bahia, o campo está virgem, cutucando o apetite alheio. Duram esses doces porque têm o seu humilde mercado consumidor, teimoso na predileção secular. O moleque, já dizendo nô-bom alô mai frende, tira o remastigado chicle da boca e volta aos velhos doces, que seu avô também comeu na mesma época e feição.